Mongólia, asfixiada por Rússia e China, resiste
Vitor Pinto
Escritor. Analista internacional
A
vida numa tenda
É
final de outubro em Ulan Bator (Ulaanbaatar no idioma mongol), a capital mais
fria do mundo, ainda no outono, mas a temperatura subitamente caiu para 15
graus negativos e veio a primeira nevasca, antecipando o inverno. No país do
céu azul em que nuvens só reaparecerão meses depois, ruas e calçadas ficam
cobertas por uma camada de gelo que, todos sabem, só derreterá quando vier a
primavera, cinco meses depois. Nesse período, crianças e idosos sofrem sob o
risco constante de queda e precisam adotar cuidados extraordinários; os carros desde
já precisam substituir seus jogos de pneus. É só esperar uns dias para que o
fenômeno da inversão térmica dê origem a uma camada entre o cinza e o marrom
acima da cidade retendo um ar tóxico que gradativamente levará seu milhão e
meio de habitantes a conviver com o fenômeno conhecido como “violência lenta”.
A queima de carvão bruto para aquecimento das casas é causa predominante ou
acessória, junto com a baixíssima umidade relativa do ar e a seca, para os
níveis absurdos de poluição atmosférica que organizações como a “Clean Air
Pollution - Breathe Air” (“Poluição e ar limpo – ar respirável”, em tradução
livre) tentam infrutiferamente combater.
Situado
no leste da Ásia, do tamanho do estado do Amazonas (1,5 milhão de km2) e tendo
fora das cidades uma população predominantemente nômade, o país é pouco
povoado. A população total é de 3,3 milhões de habitantes e sua densidade
populacional, de 1,92 habitantes por km2, supera apenas países como Guiana
Francesa, Namíbia ou Austrália (o Brasil, outro país vazio, tem menos de 24
pessoas por km2). Distante do mar, a Mongólia tem um clima continental extremo
com invernos muito frios e verões curtos e quentes sobretudo no deserto de Gobi
que ocupa boa parte do sul do país. Estepes e montanhas compõem a paisagem ao
norte e a oeste, onde estão os românticos cazaques ainda dedicados à falcoaria
(caça com falcões domesticados). Rios e lagos em geral secam durante boa parte
do ano, reaparecendo graças às fortes chuvas de verão, com o que o país é forçado
a importar principalmente da Rússia quase toda a eletricidade que consome.
Seis
de cada dez famílias vivem em Gers, as tradicionais tendas transportáveis que
podem ser instaladas onde espaço houver, inclusive em Ulan Bator que lhes
destina amplos terrenos específicos. Uma Ger tem estrutura interna em treliça e
81 postes de madeira (o número 9 dá sorte e 81 é 9x9, As maiores têm 108 postes
ou 12x9) coberta por feltro ou lã, em geral com lona por cima e uma só porta,
ideal para proteção contra o calor ou o frio, sempre sem fundações na terra, o
que facilita sua locomoção. Não possuem instalações sanitárias e as
necessidades são feitas no ambiente externo. Classicamente a Ger possui uma
cama ampla com o fogão no centro, ficando os implementos de cozinha e as roupas
das crianças à direita, pois o lado esquerdo pertence aos homens. Nas cidades a
Ger (ou Yurta para os povos das vizinhanças) transforma-se numa moradia
definitiva.
Um campo de Gers na Mongólia. É comum a
opção por um fogão a lenha no centro para aquecer melhor no longo inverno.
Sufocada
entre dois vizinhos poderosos – Rússia ao norte e China ao sul – a Mongólia
desde 1990 fez sua revolução democrática, elaborou uma nova Constituição e tem
votado na ONU como se fosse neutra frente à invasão russa da Ucrânia. A exemplo
de muitos outros países, o povo afinal decidiu pressionar nas ruas e na última
semana mesmo sob frio extremo, com temperaturas rondando os 21 graus negativos,
um numeroso grupo reuniu-se na praça central de Sukhbaatar, com cartazes
proclamando que o país está em colapso econômico. As razões mais imediatas são
uma inflação superior a 15% e a revolta contra parlamentares e funcionários da
empresa estatal de mineração Erdenes, acusados de desviar fundos em benefício
próprio das minas de carvão que representam ¼ do PIB nacional.
A
situação econômica é crítica porque praticamente tudo o que é produzido termina
sendo exportado para a China e recentemente as fronteiras de novo foram
fechadas devido à política de Covid zero adotada por Pequim. Com o país hoje
desproporcionalmente dependente do seu maior parceiro comercial, o bloqueio da
extensa faixa que divide as duas nações tem feito com que as exportações da
Mongólia caiam e os preços domésticos se elevem a taxas absurdas. Além do
carvão bruto, a Mongólia se destaca por produzir um terço da caxemira do mundo
ou 9 mil toneladas por ano obtido de rebanhos que reúnem 20 milhões de cabras.
O grande orgulho dos mongois, contudo, está nos planteis dos famosos
cavalos-de-przewalski (nome do naturalista russo que os identificou), porte
médio, pelagem castanha clara, crina negra e grande resistência. Selvagens, tem
origem milenar, tendo acompanhado os grandes cavaleiros hunos e as ofensivas de
Gengis Khan, mas acabaram extintos na natureza no início dos anos 1960,
sobrevivendo hoje em cativeiro. As competições equestres são o esporte
nacional.
As
opções políticas também são cada vez mais limitadas. Xi Jinping removeu limites
de seu mandato, o que lhe abriu a possibilidade de governar por toda a vida;
enquanto Putin assinou uma revisão da Constituição e pode permanecer no poder
até o ano de 2.036. Como disse Tsakhiagiin Elbegdorj, presidente da República
de 2009 a 2017 pelo Partido Democrático, “sinto que agora temos apenas um
vizinho; China e Rússia tornaram-se como que um só país em torno da Mongólia.”
A
grande nação mongol
Nascido
Temudjin Borgijin em 1162, Gengis Khan embora tenha vivido curtos 65 anos foi
capaz de erguer o Império Mongol que seus descendentes fizeram chegar a Pequim
e a Moscou; à Índia, Paquistão e Afeganistão; à Polônia, Hungria e Albânia,
conectando oriente e ocidente, do Pacífico ao Mediterrâneo num reino que já no
final do século XIII dominava algo como 20% do planeta: o maior império de
terras contíguas de todos os tempos.
Deixando
milhares de mortos por onde passava, Gengis sob certos aspectos foi um homem
justo: baseou seu Império na lealdade e não na religião, admitindo a mais ampla
liberdade religiosa; adotou a escrita uigur e isentou os pobres e o clero de
impostos; reabriu a rota da seda por onde viajou Marco Polo; deu grande impulso
à astronomia e à matemática, além de contribuir decisivamente para a utilização
do dinheiro em papel, o início do livre comércio e da imunidade diplomática. Os
chineses lhe atribuem (e a seu neto Kublai) a criação da dinastia Yuan.
Conta-se
que um dos seus descendentes, Mongke Khan, pediu ao missionário flamengo Guilherme
de Rubruck que organizasse uma reunião na qual disse: “cada um de vocês –
cristãos, sarracenos (islamitas), budistas – diz que sua doutrina é a melhor.
Ele deseja que vocês se juntem e façam uma comparação para que possa conhecer a
verdade”. Formou-se ali uma grande multidão, pois cada lado chamou os mais
erudidos de seu povo. Mongke insistiu que cada religião da Mongólia recebesse
uma audiência justa em seu tribunal. Ao que parece, o próprio Rubruck, que era
franciscano, não ficou satisfeito com seu desempenho e foi mandado embora sem
que finalmente se obtivesse qualquer resultado concreto.
Afinal,
Yeke Mongyol Ulus, a Grande Nação Mongol, atingiu um estágio de
acelerado declínio após o ano 1.725 cedendo ao poderio do Império Britânico
quando o último imperador, Bahadur Ká II, estava restrito ao seu palácio em
Deli, na Índia, depois de ter dominado a Eurásia, como o Estado mais rico e
poderoso da face da Terra.
Apesar
de não estabelecer restrições a qualquer religião, Gengis Khan favoreceu o
budismo ao permitir a gradativa construção de cada vez mais mosteiros, até que
o país se acostumasse e cada família se orgulhasse por ter pelo menos um de
seus filhos como monge. Neste século XXI, não menos da metade dos mongóis segue
o budismo, ao passo que 40% declaram não ter religião. Isso não impede que o
xamanismo mongol seja amplamente difundido como 1ª. ou 2ª. crença.
Gengis
Khan, morto há 795 anos, transformou-se num dos principais deuses para um povo que
o venera como o seguidor maior de Tengris, o Deus Supremo do Céu Azul. Gengis é
adorado como um semideus do tengriísmo, um herói e um ancestral divino com seu
mausoléu (sem o corpo ou seus restos) na cidade de Ordos, na Mongólia Interior
e uma imensa estátua em Ulan Bator. Ele é sempre lembrado nos “ovoos”, que são montes
de pedras xamânicas encontrados por quase toda parte nos campos ou nos
terreiros.
Submissão
e independência
Após
ficar sob influência do budismo tibetano nos séculos XVI e XVII, a Mongólia
tornou-se um domínio da dinastia Qing, a última do período imperial chinês,
substituída somente no início do século XX por ocasião do surgimento da
República da China. Em 1921 a Mongólia obteve a independência da China (até
hoje celebrada como o Dia da Revolução em 11 de julho) dando um término a
trezentos anos de domínio. Entretanto, três anos depois, em 1924, o país passou
a ser a República Popular da Mongólia, aderindo ao campo político soviético até
o colapso do regime socialista em 1989. Por fim, no ano seguinte a Mongólia fez
sua própria revolução pacífica adotando uma economia de mercado.
Entretanto,
uma enorme área de 1.183.000 km2 ao sul da Mongólia e norte da China – a Mongólia Interior – acabou sendo incorporada em
definitivo ao território chinês, tornando-se uma província autônoma sob o
comando de Pequim que atualmente é a 3ª. subdivisão em tamanho do país (aí está
grande parte da Muralha da China), tendo limites com outras sete províncias
além da Mongólia e Rússia. Ao contrário das famílias uighures e tibetanas,
entre os mongóis não há restrição quanto a casar com parceiros Han.
As
quase sete décadas sob mando soviético testemunharam a sistemática eliminação
de “inimigos” (adversários políticos), especialmente entre 1967 e 1969, um
massacre conhecido como “A Grande Repressão” ordenado por Stalin e executado
com sadismo pelo Marechal de Campo Khorloogiin Choibalsan. Com o objetivo de
esmagar a religião na Mongólia, a maioria dos lamas tibetanos foi executada ou
castrada ao lado de 40 a 100 mil mongóis no processo de expurgo do Partido
Revolucionário do Povo da Mongólia Interior. Dos 700 mosteiros existentes os
poucos que restaram, após tanto tempo vazios, foram gradativamente recuperados
na década dos anos 1990 com o renascimento dos cultos em geral. Ainda assim, o
período soviético coincidiu com a extinção do analfabetismo e da epidemia de
sífilis que estava generalizada, ademais de impedir a absorção do país pela
China como aconteceu com o Tibete. Esta história está contada no livro The Lost
Country de Jackson Becker* e no Museu da Perseguição Política em Ulan Bator que
expõe crânios de pessoas executadas com um tiro na cabeça.
Nesta
fase republicana a primeira eleição livre multipartidária ocorreu em julho de
1990 para 430 cadeiras no Great Hural (Casa Superior), mas a oposição não tinha
candidatos suficientes e 83% das vagas foram preenchidas pelo MPRP, o Partido
Revolucionário do Povo Mongol. A oposição da União Democrática venceu pela
primeira vez em 1996 derrotando um comunista ortodoxo. Depois de várias
alternâncias, um presidente democrata governou até junho do ano passado.
Atualmente o presidente e o 1º Ministro pertencem ao PPM – Partido Popular da Mongólia
que substituiu o finado MPRP. Em novembro de 2022 o Presidente participou da
Conferência climática COP 27 no Egito na qual discorreu sobre o programa de
reflorestamento que pretende plantar 1 bilhão de árvores a fim de compensar o
histórico de abate para obter madeira destinada ao aquecimento das casas. No
momento os esforços do governo estão concentrados no projeto do Corredor
Econômico China – Mongólia – Rússia, uma espécie de rota da seda atualizada
pela qual deverão fluir as mercadorias de cada país, incluindo o gás russo que
abastece de maneira privilegiada a seus vizinhos.
O mapa mostra os limites do Império
Mongol no século XIII e a Mongólia atual.
No território chinês está a chamada
Mongólia Interior.
*. Para ler mais sobre a Mongólia, veja o
paulistano Guilherme Carvalho
(kalapalo.com.br/minha-biblioteca-sobre-a-mongolia/); o carioca Bernardo
Carvalho – Mongólia – Cia das Letras, 2003 (Prêmio Jabuti, 2004, categoria
romance); Galsan Tschinag (é mongol) – The Gray Earth e The Blue Sky.