Vitor Gomes

Vitor Gomes Pinto, Escritor e doutor em saúde pública

Muito obrigado por consultar este site no qual você encontrará textos principalmente sobre dois grandes temas: relações internacionais e saúde pública.

Temos interesse em temas atuais relacionados à sociedade, à política, à economia, ao desenvolvimento do setor saúde, com foco no que se passa no Brasil e no mundo.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

 

Mongólia, asfixiada por Rússia e China, resiste

Vitor Pinto

Escritor. Analista internacional

 

A vida numa tenda

É final de outubro em Ulan Bator (Ulaanbaatar no idioma mongol), a capital mais fria do mundo, ainda no outono, mas a temperatura subitamente caiu para 15 graus negativos e veio a primeira nevasca, antecipando o inverno. No país do céu azul em que nuvens só reaparecerão meses depois, ruas e calçadas ficam cobertas por uma camada de gelo que, todos sabem, só derreterá quando vier a primavera, cinco meses depois. Nesse período, crianças e idosos sofrem sob o risco constante de queda e precisam adotar cuidados extraordinários; os carros desde já precisam substituir seus jogos de pneus. É só esperar uns dias para que o fenômeno da inversão térmica dê origem a uma camada entre o cinza e o marrom acima da cidade retendo um ar tóxico que gradativamente levará seu milhão e meio de habitantes a conviver com o fenômeno conhecido como “violência lenta”. A queima de carvão bruto para aquecimento das casas é causa predominante ou acessória, junto com a baixíssima umidade relativa do ar e a seca, para os níveis absurdos de poluição atmosférica que organizações como a “Clean Air Pollution - Breathe Air” (“Poluição e ar limpo – ar respirável”, em tradução livre) tentam infrutiferamente combater.

Situado no leste da Ásia, do tamanho do estado do Amazonas (1,5 milhão de km2) e tendo fora das cidades uma população predominantemente nômade, o país é pouco povoado. A população total é de 3,3 milhões de habitantes e sua densidade populacional, de 1,92 habitantes por km2, supera apenas países como Guiana Francesa, Namíbia ou Austrália (o Brasil, outro país vazio, tem menos de 24 pessoas por km2). Distante do mar, a Mongólia tem um clima continental extremo com invernos muito frios e verões curtos e quentes sobretudo no deserto de Gobi que ocupa boa parte do sul do país. Estepes e montanhas compõem a paisagem ao norte e a oeste, onde estão os românticos cazaques ainda dedicados à falcoaria (caça com falcões domesticados). Rios e lagos em geral secam durante boa parte do ano, reaparecendo graças às fortes chuvas de verão, com o que o país é forçado a importar principalmente da Rússia quase toda a eletricidade que consome.

Seis de cada dez famílias vivem em Gers, as tradicionais tendas transportáveis que podem ser instaladas onde espaço houver, inclusive em Ulan Bator que lhes destina amplos terrenos específicos. Uma Ger tem estrutura interna em treliça e 81 postes de madeira (o número 9 dá sorte e 81 é 9x9, As maiores têm 108 postes ou 12x9) coberta por feltro ou lã, em geral com lona por cima e uma só porta, ideal para proteção contra o calor ou o frio, sempre sem fundações na terra, o que facilita sua locomoção. Não possuem instalações sanitárias e as necessidades são feitas no ambiente externo. Classicamente a Ger possui uma cama ampla com o fogão no centro, ficando os implementos de cozinha e as roupas das crianças à direita, pois o lado esquerdo pertence aos homens. Nas cidades a Ger (ou Yurta para os povos das vizinhanças) transforma-se numa moradia definitiva.

fogão de ger

 

Ursa Major Ger Camp, Orkhon Valley | Wild Frontiers

Um campo de Gers na Mongólia. É comum a opção por um fogão a lenha no centro para aquecer melhor no longo inverno.

Sufocada entre dois vizinhos poderosos – Rússia ao norte e China ao sul – a Mongólia desde 1990 fez sua revolução democrática, elaborou uma nova Constituição e tem votado na ONU como se fosse neutra frente à invasão russa da Ucrânia. A exemplo de muitos outros países, o povo afinal decidiu pressionar nas ruas e na última semana mesmo sob frio extremo, com temperaturas rondando os 21 graus negativos, um numeroso grupo reuniu-se na praça central de Sukhbaatar, com cartazes proclamando que o país está em colapso econômico. As razões mais imediatas são uma inflação superior a 15% e a revolta contra parlamentares e funcionários da empresa estatal de mineração Erdenes, acusados de desviar fundos em benefício próprio das minas de carvão que representam ¼ do PIB nacional.

A situação econômica é crítica porque praticamente tudo o que é produzido termina sendo exportado para a China e recentemente as fronteiras de novo foram fechadas devido à política de Covid zero adotada por Pequim. Com o país hoje desproporcionalmente dependente do seu maior parceiro comercial, o bloqueio da extensa faixa que divide as duas nações tem feito com que as exportações da Mongólia caiam e os preços domésticos se elevem a taxas absurdas. Além do carvão bruto, a Mongólia se destaca por produzir um terço da caxemira do mundo ou 9 mil toneladas por ano obtido de rebanhos que reúnem 20 milhões de cabras. O grande orgulho dos mongois, contudo, está nos planteis dos famosos cavalos-de-przewalski (nome do naturalista russo que os identificou), porte médio, pelagem castanha clara, crina negra e grande resistência. Selvagens, tem origem milenar, tendo acompanhado os grandes cavaleiros hunos e as ofensivas de Gengis Khan, mas acabaram extintos na natureza no início dos anos 1960, sobrevivendo hoje em cativeiro. As competições equestres são o esporte nacional.     

As opções políticas também são cada vez mais limitadas. Xi Jinping removeu limites de seu mandato, o que lhe abriu a possibilidade de governar por toda a vida; enquanto Putin assinou uma revisão da Constituição e pode permanecer no poder até o ano de 2.036. Como disse Tsakhiagiin Elbegdorj, presidente da República de 2009 a 2017 pelo Partido Democrático, “sinto que agora temos apenas um vizinho; China e Rússia tornaram-se como que um só país em torno da Mongólia.”

A grande nação mongol

Nascido Temudjin Borgijin em 1162, Gengis Khan embora tenha vivido curtos 65 anos foi capaz de erguer o Império Mongol que seus descendentes fizeram chegar a Pequim e a Moscou; à Índia, Paquistão e Afeganistão; à Polônia, Hungria e Albânia, conectando oriente e ocidente, do Pacífico ao Mediterrâneo num reino que já no final do século XIII dominava algo como 20% do planeta: o maior império de terras contíguas de todos os tempos.

Deixando milhares de mortos por onde passava, Gengis sob certos aspectos foi um homem justo: baseou seu Império na lealdade e não na religião, admitindo a mais ampla liberdade religiosa; adotou a escrita uigur e isentou os pobres e o clero de impostos; reabriu a rota da seda por onde viajou Marco Polo; deu grande impulso à astronomia e à matemática, além de contribuir decisivamente para a utilização do dinheiro em papel, o início do livre comércio e da imunidade diplomática. Os chineses lhe atribuem (e a seu neto Kublai) a criação da dinastia Yuan.

Conta-se que um dos seus descendentes, Mongke Khan, pediu ao missionário flamengo Guilherme de Rubruck que organizasse uma reunião na qual disse: “cada um de vocês – cristãos, sarracenos (islamitas), budistas – diz que sua doutrina é a melhor. Ele deseja que vocês se juntem e façam uma comparação para que possa conhecer a verdade”. Formou-se ali uma grande multidão, pois cada lado chamou os mais erudidos de seu povo. Mongke insistiu que cada religião da Mongólia recebesse uma audiência justa em seu tribunal. Ao que parece, o próprio Rubruck, que era franciscano, não ficou satisfeito com seu desempenho e foi mandado embora sem que finalmente se obtivesse qualquer resultado concreto.

Afinal, Yeke Mongyol Ulus, a Grande Nação Mongol, atingiu um estágio de acelerado declínio após o ano 1.725 cedendo ao poderio do Império Britânico quando o último imperador, Bahadur Ká II, estava restrito ao seu palácio em Deli, na Índia, depois de ter dominado a Eurásia, como o Estado mais rico e poderoso da face da Terra.

Apesar de não estabelecer restrições a qualquer religião, Gengis Khan favoreceu o budismo ao permitir a gradativa construção de cada vez mais mosteiros, até que o país se acostumasse e cada família se orgulhasse por ter pelo menos um de seus filhos como monge. Neste século XXI, não menos da metade dos mongóis segue o budismo, ao passo que 40% declaram não ter religião. Isso não impede que o xamanismo mongol seja amplamente difundido como 1ª. ou 2ª. crença.

Gengis Khan, morto há 795 anos, transformou-se num dos principais deuses para um povo que o venera como o seguidor maior de Tengris, o Deus Supremo do Céu Azul. Gengis é adorado como um semideus do tengriísmo, um herói e um ancestral divino com seu mausoléu (sem o corpo ou seus restos) na cidade de Ordos, na Mongólia Interior e uma imensa estátua em Ulan Bator. Ele é sempre lembrado nos “ovoos”, que são montes de pedras xamânicas encontrados por quase toda parte nos campos ou nos terreiros.

Submissão e independência

Após ficar sob influência do budismo tibetano nos séculos XVI e XVII, a Mongólia tornou-se um domínio da dinastia Qing, a última do período imperial chinês, substituída somente no início do século XX por ocasião do surgimento da República da China. Em 1921 a Mongólia obteve a independência da China (até hoje celebrada como o Dia da Revolução em 11 de julho) dando um término a trezentos anos de domínio. Entretanto, três anos depois, em 1924, o país passou a ser a República Popular da Mongólia, aderindo ao campo político soviético até o colapso do regime socialista em 1989. Por fim, no ano seguinte a Mongólia fez sua própria revolução pacífica adotando uma economia de mercado.

Entretanto, uma enorme área de 1.183.000 km2 ao sul da Mongólia e norte da China a Mongólia Interior – acabou sendo incorporada em definitivo ao território chinês, tornando-se uma província autônoma sob o comando de Pequim que atualmente é a 3ª. subdivisão em tamanho do país (aí está grande parte da Muralha da China), tendo limites com outras sete províncias além da Mongólia e Rússia. Ao contrário das famílias uighures e tibetanas, entre os mongóis não há restrição quanto a casar com parceiros Han.

As quase sete décadas sob mando soviético testemunharam a sistemática eliminação de “inimigos” (adversários políticos), especialmente entre 1967 e 1969, um massacre conhecido como “A Grande Repressão” ordenado por Stalin e executado com sadismo pelo Marechal de Campo Khorloogiin Choibalsan. Com o objetivo de esmagar a religião na Mongólia, a maioria dos lamas tibetanos foi executada ou castrada ao lado de 40 a 100 mil mongóis no processo de expurgo do Partido Revolucionário do Povo da Mongólia Interior. Dos 700 mosteiros existentes os poucos que restaram, após tanto tempo vazios, foram gradativamente recuperados na década dos anos 1990 com o renascimento dos cultos em geral. Ainda assim, o período soviético coincidiu com a extinção do analfabetismo e da epidemia de sífilis que estava generalizada, ademais de impedir a absorção do país pela China como aconteceu com o Tibete. Esta história está contada no livro The Lost Country de Jackson Becker* e no Museu da Perseguição Política em Ulan Bator que expõe crânios de pessoas executadas com um tiro na cabeça.

Nesta fase republicana a primeira eleição livre multipartidária ocorreu em julho de 1990 para 430 cadeiras no Great Hural (Casa Superior), mas a oposição não tinha candidatos suficientes e 83% das vagas foram preenchidas pelo MPRP, o Partido Revolucionário do Povo Mongol. A oposição da União Democrática venceu pela primeira vez em 1996 derrotando um comunista ortodoxo. Depois de várias alternâncias, um presidente democrata governou até junho do ano passado. Atualmente o presidente e o 1º Ministro pertencem ao PPM – Partido Popular da Mongólia que substituiu o finado MPRP. Em novembro de 2022 o Presidente participou da Conferência climática COP 27 no Egito na qual discorreu sobre o programa de reflorestamento que pretende plantar 1 bilhão de árvores a fim de compensar o histórico de abate para obter madeira destinada ao aquecimento das casas. No momento os esforços do governo estão concentrados no projeto do Corredor Econômico China – Mongólia – Rússia, uma espécie de rota da seda atualizada pela qual deverão fluir as mercadorias de cada país, incluindo o gás russo que abastece de maneira privilegiada a seus vizinhos.

 

Mapa

Descrição gerada automaticamente

O mapa mostra os limites do Império Mongol no século XIII e a Mongólia atual.

No território chinês está a chamada Mongólia Interior.

 

*. Para ler mais sobre a Mongólia, veja o paulistano Guilherme Carvalho (kalapalo.com.br/minha-biblioteca-sobre-a-mongolia/); o carioca Bernardo Carvalho – Mongólia – Cia das Letras, 2003 (Prêmio Jabuti, 2004, categoria romance); Galsan Tschinag (é mongol) – The Gray Earth e The Blue Sky.

domingo, 29 de janeiro de 2023

 

Peru: Castillo não é o culpado pela crise permanente

Vitor Pinto

Analista internacional. Autor de “Guerra en los Andes” – Ed. Abya Yala, Quito, 2. Ed.

 

Pedro Castillo, um modesto professor e camponês de Chota na província sulista de Cajamarca, filho de pais analfabetos, que subitamente viu-se guindado à presidência do Peru, um país de 34 milhões de habitantes, desesperadamente necessitava de apoio e de amigos, mas não os encontrou e após 495 dias viu-se deposto por um Congresso que nunca se mostrou confiável e é, na verdade, um ninho de jararacas.

Inexperiente, fez um curto e desastroso governo. Tentou de tudo: da extrema esquerda, à esquerda, logo para a direita e então a extrema direita; que mais não fizeram exceto exigir-lhe cargos e participação nos contratos de obras e serviços. Ao final estava nas mãos de uma 1ª. Ministra independente, Betty Chávez Chino, que também não ajudou. Nomeou nada menos que 78 ministros, um a cada 6,3 dias e sua proposta de discutir uma nova Constituição não foi sequer apreciada pelo Parlamento que, ao contrário, aprovou a Lei 31355 em outubro de 2021 com um só artigo que não permitia a apresentação de propostas de mudança constitucional e na prática terminava de manietar completamente o Executivo, impedindo-o de governar.

Uma das particularidades que mais lhe agradavam era a cerimônia de juramento de aceitação da Constituição dos novos ministros. O pobre do nomeado apresenta-se e ajoelha num patíbulo tendo um enorme crucifixo à esquerda, a bandeira peruana à direita e o presidente em pé à frente. A cerimônia, um resquício medieval do poder da igreja católica, está na imagem abaixo, agora com o preito sendo ofertado à nova presidente.

Não satisfeitos, os congressistas passaram a dedicar todo seu tempo à tarefa de derrubá-lo do governo. Dois pedidos de impeachment fracassaram, mas o terceiro teve sucesso. Num Parlamento com 130 cadeiras, o partido Perú Libre de Castillo elegeu apenas 37 deputados e, mesmo assim, em seguida sofreu uma cisão, dividindo-se em duas alas, das quais só o Bloque Magisterio seguiu apoiando o presidente. Outros 40, de agremiações de centro, adotaram um comportamento camaleônico, negociando vantagens passageiras para votar contra o impeachment que pela legislação nacional requer 2/3 de suporte, ou seja, 87 votos. Os restantes 53 deputados são de direita ou votam com ela.

Figura relevante na política peruana é Keiko Fujimori, filha do ditador Alberto Fujimori. Ela, que recentemente esteve presa por corrupção ligada à empresa brasileira Odebrecht, perdeu as três últimas eleições à presidência por mínimas diferenças para, de imediato, lançar seu partido Fuerza Popular (ocupa 24 cadeiras no Parlamento) ferozmente contra o presidente eleito forçando, em geral com sucesso, sua queda. 

 

   

A queda de um presidente

A desmoralização do presidente, dia após dia desde a posse em julho de 2021 martelada pela oposição radical, tornou-se incontornável. Um dos muitos ex-ministros (José Perez Guadalupe, do Interior), ao sair acusou-o de dirigir uma “ineptocracia”. Quando, em fevereiro de 22 ele resolveu abandonar o sombrero de paja de palma (palha) típico de sua Cajamarca que lhe fazia o ridículo por onde ia, o conhecido analista político Augusto Rodrich comentou: “o problema é que sacou o sombrero, mas não as ideias que estavam por debaixo do sombrero”. No clímax do desrespeito, os ricos perdem a compostura e o chamam de “cholo de mierda”. 

O único a reagir à altura em 7 de dezembro último foi o mexicano Manuel López Obrador que criticou duramente a direita peruana por deixar sem opções a um presidente eleito pelo povo. De fato, quando a maioria congressual contra si se tornou evidente na 3ª moção de impedimento, sem qualquer chance de seguir governando, Castillo apelou para a derradeira opção: foi para a TV e declarou que estava fechando o Congresso e implantando um regime de exceção no qual passaria a governar por decreto. A exemplo de quase tudo em sua administração esse foi um improviso a mais.

Castillo acreditou que teria o respaldo das Forças Armadas (seu comandante declarou que jamais o presidente lhe pedira para intervir), do seu gabinete no qual ninguém ficou a seu lado por sequer os ministros terem sido informados da decisão do chefe, e do povo uma vez que embora ele próprio tivesse só 31% de aprovação nas pesquisas de opinião, o Congresso era rejeitado por nove em cada dez peruanos. Sem organização para tanto, tudo deu errado.

Ele ainda tentou fugir rumo à embaixada mexicana, mas foi pego e encarcerado (atualmente cumpre pena de 18 meses de prisão preventiva no presídio de Barbadillo, arredores de Lima, onde já está Alberto Fujimori). A acusação é de que tentara um Golpe de Estado. Sem dúvida foi seu derradeiro erro, mas o fez claramente por estar acuado, porque os congressistas – temendo perder seus mandatos – não lhe deixaram alternativa. Esta, aliás, é a posição defendida pela massa camponesa que nas ruas e nas estradas pressiona pelo afastamento de Dina, mesmo estando claro que a volta do atrapalhado Castillo não mais acontecerá.

Economia se salva e conflito mina poder de Boluarte

Curiosamente a economia peruana segue de vento em popa. Depois de cair em 2020 pela pandemia, voltou a crescer 13% em 2021 e 2,8% em 22. O Peru foi a economia que mais cresceu na América Latina nos últimos 20 anos, à exceção do Panamá. E isso apesar da intensa instabilidade política. Analistas do setor argumentam que a chave está num Banco Central autônomo com política monetária independente em relação à política fiscal e sempre dirigido por Julio Velarde. Ademais do equilíbrio orçamentário, o fato de o país pertencer à Aliança do Pacífico dá-lhe estabilidade, sob reservas internacionais que permanecem consideráveis.

A instabilidade política vem da ditadura de Fujimori e Montesinos dos anos 90. Pelo caminho, o presidente Alan García, também implicado no escândalo Odebrecht, suicidou-se. Mais recentemente o país degringolou após a renúncia de PPK (Pedro Pablo Kuczynski) em 2018 e desde então já são 6 presidentes. Um deles, Manuel Merino que era presidente do Congresso, assumiu a presidência numa 3ª. feira e saiu no domingo imediato em novembro de 2020. Na raiz, os problemas são sempre os mesmos: corrupção, má gestão e os políticos que fazem do Congresso um palco reacionário de negócios.

Contudo, a vitória de Pedro Castillo deu-se pelo maciço apoio da população camponesa que perfaz 21% dos peruanos (hoje 7,2 milhões) e agora se revolta bloqueando as grandes e pequenas carreteras (estradas), a começar pela Pan-Americana e Central. No informe mais atual eram 120 pontos críticos bloqueados no país.

O epicentro do conflito, no qual a polícia e o exército já mataram 62 civis nos primeiros 45 dias do governo da vice Dina Boluarte (empossada como presidente interina que promete antecipar as eleições, mas governa como se quisesse completar o mandato), está no sul do país, nas origens do presidente deposto.

“Castillo foi tão maltratado quanto nós o somos habitualmente” diz uma ativista em Puno, na fronteira com a Bolívia onde a principal atração é o mais alto lago do mundo, o Titicaca com suas ilhas flutuantes feitas de junco (totora) pelos índios Uros. A belíssima Cusco virou uma cidade fantasma sem os turistas que daí acessam Macchu Pichu, isolada desde que a estrada de ferro foi danificada e interrompida.

Como se estivesse numa guerra real, o Ministro da Defesa negocia a criação de corredores humanitários para retirar vítimas. O Peru, sob estado de emergência, aguarda. Dina Boluarte obteve do Congresso uma moção de apoio, mas cresce a pressão para que renuncie como única solução para o impasse.

As Forças Armadas intervieram na Universidade de San Marcos, a principal do país, alegando solicitação da reitora. Os estudantes se estruturam para realizar uma nova Marcha de los 4 Suyos, numa homenagem às quatro regiões em que se dividia o império Inca no século XVI e repetindo a que se realizou no ano 2000 pouco antes da queda e fuga de Fujimori.*     

 

 

 

Homem de terno e gravata com chapéu na cabeça

Descrição gerada automaticamente

Pedro Castillo, presidente do Peru, cassado em 7/12/2022, com seu sombrero chotano

 

Pessoas com instrumentos musicais e microfone em local iluminado

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Lima, janeiro/2023. Com a bandeira peruana nas mãos a mulher desafia as tropas que no governo Dina Boluarte já mataram 62 civis nos primeiros 45 dias de mandato (imagem – www.vozdeamerica.com)

La presidenta de Perú, Dina Boluarte, toma juramento a su primer ministro, Pedro Miguel Ángulo Arana, durante una ceremonia en el Palacio de Gobierno de Lima (Perú). La presidenta de Perú, Dina Boluarte, toma juramento a su primer ministro, Pedro Miguel Ángulo Arana, durante una ceremonia en el Palacio de Gobierno de Lima (Perú). — Paolo Aguilar / EFE

Ministro faz juramento ao tomar posse ajoelhando perante o crucifixo e a presidente Boluarte, como se no século XII estivesse.

*. Para melhor compreender a situação peruana, vide textos anteriores deste site:

https://www.mundoseculoxxi.com.br/2022/04/2022-04-09-peru-em-nova-encruzilhada/

https://www.mundoseculoxxi.com.br/2020/11/2020-11-18-a-tragedia-politica-peruana/

 Índia, um gigante submetido a Narendra Modi

Vitor Pinto

Escritor. Analista internacional

 

Rahul Gandhi, reunindo as energias restantes de seus 52 anos de idade, enfrentou durante três meses uma longa caminhada por 3.500 km, encerrada no início de novembro último em Punjab ao norte, no sopé do Himalaia de onde se estende a Caxemira indiana. Foi uma vatra (peregrinação), feita em nome da unidade da Índia e em busca da redenção política após uma década de derrotas eleitorais do seu Partido do Congresso para o Barathiya Janata Party – BJP  – do 1º ministro Narendra Modi que dessa feita e pela primeira vez se calou. A épica empreitada aconteceu sob a marca da harmonia religiosa e da recuperação da prosperidade perdida desde que o hindutva - sinônimo do nacionalismo radical hindu - se impôs especialmente durante o governo atual eleito com maioria absoluta em 2019 para um novo período de cinco anos. Ao longo do caminho Rahul dedicou-se a conversar e a ouvir o povo que nas ruas, no campo e nas casas o recebeu.

Sempre atingida pelo signo da violência que está na essência desse imenso país, a família de Rahul já assistiu ao assassinato da sua avó Indira Gandhi e do pai Rajiv. O único a ter um destino natural foi o bisavô Jawaharlal Nehru (todos como 1º Ministros). A execução de Mohandas Gandhi – de outra família - por um ativista Sikh em Delhi 75 anos atrás desencadeou mais uma das costumeiras chacinas de base religiosa ou racial, então contra os brâmanes que encabeçam o regime de castas em que se divide a sociedade. O P. do Congresso, de centro-esquerda, cuja proposta é baseada na equidade, foi governo por diversas vezes desde a independência em 1947. Os muçulmanos (até então todos nascidos na Índia e convertidos ao islã) que aí vivem têm sido literalmente massacrados pelo BJP no poder e não há esperanças de grandes melhorias com uma eventual troca de governo. Afinal, não esquecem a administração de Rajiv Gandhi na década dos anos 80, que favoreceu ativamente a maioria hindu.

Na Índia nada é pequeno

Agora tudo se concentra nas megaeleições de abril de 2024 quando 900 milhões de indianos voltarão às urnas. Como o voto é opcional, estima-se que – a exemplo das últimas eleições em 2019 - comparecerão cerca de 600 milhões (o 1/3 restante compõe-se basicamente dos mais pobres). Então, a ultradireita perdera apoio popular devido ao fracasso de suas propostas econômicas e para vencer novamente só restara o mesmo caminho de costume: uma guerra com o Paquistão para desviar o foco. Um incidente com 40 vítimas indianas na fronteira da Caxemira, que Modi considerou ser um ato de terrorismo paquistanês, foi o suficiente para transformar a campanha eleitoral numa resposta ao “insulto à honra da Índia”.

Contudo, a Índia é uma terra de absurdas variedades e desigualdades. O sistema de castas, abolido desde 1947, continua sendo a base da vida diária. Há os brâmanes (sacerdotes, professores, filósofos: 6,3% dos indianos); os Xatrias (militares, administradores) e Vaixas (comerciantes, ambos com 24,7%); os Sudras (operários, artesãos, camponeses com 52%) e os sem-casta ou Dalits (impuros, lidam com lixo, cadáveres, correspondem a 17%). Aí nasceu o conceito das políticas inclusivas ou cotas, e hoje as há para qualquer ramo ou atividade.

A força de trabalho chegou a um ponto em que somente 7% é formal, enquanto 93% estão na informalidade, executando serviços por tarefa, sem contrato nem férias e muito menos proteção social. De acordo com K. Hemalatha, presidente da Central de Sindicatos Indianos em visita recente ao Brasil, após dezessete grandes greves nos últimos 15 anos, a de 2018 teve participação de 200 milhões de trabalhadores reivindicando desde um salário-mínimo nacional até a oferta de empregos regulares. O BJP, ao contrário, aprovou leis que permitem contratos curtos, com poucas semanas de duração. Vigora um Sistema de Distribuição Pública de alimentos (PDS), para variar o maior do mundo no gênero, com 550 mil “lojas de racionamento” vendendo principalmente trigo, arroz e açúcar a preços subsidiados para 40 milhões de famílias cadastradas. O sistema opera sob descrédito geral, sujeito a corrupção intensa pelos intermediários, e com baixa qualidade.

Quem visita as cidades desse país fica impressionado com o seu rápido progresso e com suas ruas e avenidas. Bangalore, o “Vale do Silício indiano”, p.ex., com seu metrô sempre em obras, é uma grande confusão de motos e riquixás em largas avenidas sem qualquer mão a obedecer no caótico trânsito que só flui graças à mão invisível de Shiva ou de qualquer uma das mais de 330 milhões de divindades adoradas no país (afora as cerca de 190 milhões de vacas, igualmente sagradas para a religião hindu). O forte impulso à economia veio com a chegada das multinacionais estimuladas pelo pagamento de baixos salários a uma mão de obra abundante e pela disponibilidade de um imenso mercado interno, além da desregulamentação da força de trabalho e conhecimento generalizado do idioma inglês. Outra vantagem é o fuso horário; enquanto os executivos dormem no ocidente, os indianos produzem  

A nação asiática possui uma população de 1,4 bilhão de habitantes e a incrível densidade demográfica de 435 pessoas por km2, muito maior que a de países similares em tamanho como China (149/km2), Brasil (26/km2) ou Austrália (3,5/km2). A migração para as cidades tem aumentado, mas ainda sete de cada dez indianos vivem na zona rural, dedicados a práticas agrícolas. Duramente atingida pela pandemia da covid-19, a Índia é o 2º país com maior número de casos - 44,7 milhões -, inferior somente aos EUA. No período mais crítico, o hábito hindu de cremar seus mortos fez com que se multiplicasse sem controle a quantidade de piras pelas praças, beiras de rio e por onde quer que fosse possível ateá-las.    

Radicalismo antimuçulmano

A Índia de Narendra Modi detém o duvidoso título de maior “democracia neofascista do mundo”, superando a regimes como os de Víctor Orbán na Hungria, Receep Erdogan na Turquia, Vladimir Putin na Rússia ou ideologicamente fascistas como os de Jair Bolsonaro (até janeiro de 2023) no Brasil, Benjamin Netanyahu em Israel, Giorgia Meloni na Itália, entre outros. O termo “democracia” se deve ao fato de que as eleições indianas não têm similar no globo em função de seus gigantescos e inigualáveis números. Talvez por reconhecimento a Trump, Modi adotou o slogan India First, depois complementado com “Muslims for them, Indian for us” (Muçulmanos para eles, Indianos para nós). Desde 2019 o BJP assumiu sozinho um governo de ultradireita com um tremendo inimigo: os 14% da população que é muçulmana, ou seja, 200 milhões de indivíduos. A ideia já havia sido posta em prática quando da independência em 1947, ocasião em que a retirada dos britânicos provocou uma migração abrupta e em massa de islâmicos para o também recém-criado Paquistão e de hindus e sikhs para a Índia. Morreu pelo menos 1 milhão de pessoas em tempos nos quais os trens enviados de cada lado para o outro circulavam entupidos de corpos.

Modi já era conhecido no ramo. Como ministro-chefe do estado de Gujarat  ao final de fevereiro de 2002 foi acusado de tolerar e estimular a violência que resultou em até 2.000 vítimas, a grande maioria muçulmanos queimados vivos ou assassinados com arma branca por hordas de hindus que queriam vingar a morte de alguns dos seus no incêndio de um vagão de trem. Num dos primeiros crimes do que foi diagnosticado como “Terrorismo de Estado”, em Sardarpura uma multidão jogou gasolina e tocou fogo em uma casa que abrigava dezenas de muçulmanos, incinerando a todos enquanto dançava em volta comemorando o feito. Durante a investigação dos massacres a entrada de Modi nos EUA foi vedada por muitos anos.

Desde 2019 as emboscadas e execuções de muçulmanos se tornaram tão comuns na Índia que têm sido consideradas “o novo normal” pela Suprema Corte de Justiça dando sustentação aos tribunais controlados por adeptos do BJP. São grupos de vigilantes antimuçulmanos com estrutura paramilitar e que se dizem protetores das vacas supostamente sendo abatidas e comercializadas por seguidores do Islã no mercado negro.

Na Caxemira indiana, o único estado com maioria populacional muçulmana, uma nova lei recentemente anulou de maneira unilateral sua autonomia limitada que proibia a compra de terras por indianos. A polícia de Modi tem detido e eliminado ativistas islâmicos locais e bloqueado com muita frequência e de maneira seletiva o acesso à internet. O executivo fez aprovar a nova lei de cidadania que facilita a nacionalização de sikhs, budistas, migrantes cristãos do exterior, mas exclui os muçulmanos ao aplicar ao tema pela primeira vez um critério baseado na religião. A Caxemira paquistanesa, que abriga 4,5 milhões de pessoas em 32% do território (frente a 53% da área indiana - com 12,5 milhões de habitantes - mais 14% da área chinesa), tem a curiosa particularidade de ser em boa parte financiada com contribuições de migrantes “Mirpuri” na Inglaterra (Birminghan, Leeds e outras cidades acolhem a diáspora de Mirpur na Caxemira) entre os quais, a exemplo da terra natal, os casamentos são em geral forçados e consanguíneos.

Num dos mais intensos protestos contra a Lei da Cidadania a violência estourou em Nova Delhi em 2020 com a execução de dezenas de pessoas, num incidente estimulado por políticos do BJP e sem intervenção da polícia para impedir os ataques das turbas hindus.

No pleito do próximo ano não é esperada uma mudança radical, mas o BJP de Modi pode perder a maioria absoluta no Parlamento onde ocupa 303 cadeiras (55% do total), contra apenas 52 do Partido do Congresso que deverá apostar suas fichas num projeto de médio prazo destinado a minar gradativamente o poder dominante, numa luta para reduzir as desigualdades tornando a Índia uma sociedade um pouco mais justa. Para tanto, é preciso explicar notadamente às castas mais pobres, que as razões pelas quais tantos perderam a vida para o coronavírus durante a pandemia estão ligadas fundamentalmente à discriminação imposta às raças inferiores com tanta força pela ideologia hindutva, o nacionalismo exacerbado de Modi

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

 

SOMÁLIA E SUAS MIL PRAGAS

Vitor Pinto

Escritor. Analista internacional (10/2022)

 

Seca, tsunami e os gafanhotos

Desta feita é a seca. A pior dos últimos 40 anos. A Somália país mais oriental de toda África, com uma área equivalente às dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo juntos (637,6 mil km2) e uma população de 16,7 milhões de habitantes, pouco inferior à do Rio de Janeiro —, tem um clima tropical com temperaturas rondando os 30 graus o ano todo e duas estações chuvosas: a primeira, mais intensa, em abril e maio; a segunda que deveria começar neste outubro estendendo-se até meados de dezembro. As chuvas  até conseguem acumular-se no céu em alguns finais de tarde, mas já se sabe que novamente não virão, da mesma forma que não dão o ar de sua graça desde meados de 2020. Uma das nações mais pobres do mundo, ainda não superou a grande fome de 2011 quando morreram 260 mil pessoas nem os efeitos do tsunami formado pelo oceano Índico desde a Indonésia em 2004. Muito menos os somalis esquecem a mais recente e terrível praga de gafanhotos do deserto. Como não haviam feito no último quarto de século, os insetos, do tamanho do dedo médio da mão e em nuvens de até mil quilômetros (cada uma com pelo menos 40 milhões gafanhotos) formadas em áreas inacessíveis no interior da Líbia, atravessaram o mar Vermelho e devoraram as plantações também na Etiópia e no Quênia para desespero das populações e de agências internacionais que tentavam combatê-las a base de deltametrina e outros agrotóxicos de largo espectro (sem dúvida prejudiciais à fauna e à flora borrifadas).

Estima-se que já existem 7,6 milhões de pessoas necessitando assistência humanitária – metade das quais são crianças de baixa idade e a Unicef, agência da ONU, alerta para níveis de fome na Somália nunca vistos no último meio século. As Unidades de Saúde atualmente admitem um caso de desnutrição infantil por minuto. mas muitos não conseguem acesso ao atendimento devido ao bloqueio radical promovido pela al-Shabaab, organização terrorista ligada à Al-Qaeda.

A região do Chifre da África convive com uma tradição milenar. Conta a lenda cristã que o faraó egípcio, arrependido por ter autorizado os escravos israelitas a marcharem para a terra prometida, perseguiu-os até as margens do Mar Vermelho, providencialmente aberto apenas para dar passagem aos liderados por Moisés mas que, de imediato, voltou a fechar-se afogando as tropas do Faraó. Por certo os atores dessa fábula não imaginavam que seu padrão de crueldade, submissão e vingança se eternizaria, repetindo-se séculos afora e hoje, em pleno século XXI, ainda dividiria os homens fazendo-os trucidar uns aos outros com a diferença de que, agora, o fazem com armas muito mais sofisticadas.

Chifre da África, comércio e pirataria somali

 O Chifre ou Corno da África, no nordeste do continente, compreende 4 países: Eritréia, Somália, Djibouti e Etiópia, mas há autores que ainda incluem em sua área partes de Sudão, Sudão do Sul, Quênia e Uganda. Sua importância estratégica é inegável. Com  Península do Sinal, o Golfo de Aqaba e o Canal de Suez ao norte e o corredor de Bab-el-Mandeb e o Golfo de Aden ao sul, de fato o Mar Vermelho – com Jordânia, Arábia Saudita, Yemen de um lado; Egito, Eritréia, Djibouti, Somália de outro – é a via de comunicação por excelência entre Ásia e África. No desembocar justo em frente ao  Yemen e ao Djibouti, o estreito de Bab-el-Mandel é o ponto mais crítico de todo o comércio marítimo internacional. Por ele cruzam bilhões de dólares nos 5 milhões de barris de petróleo que a cada dia vão ou vêm em direção à Europa.

Isso torna o estreito e seus arredores uma das áreas mais militarizadas do planeta. Um bom exemplo é o pequenino Djibouti, ex-Somália Francesa, que se tornou independente em 2007 e hoje é o país com mais bases estrangeiras em seu território: dos EUA, China, França, Itália, Japão, Arábia Saudita, além de várias instalações menores de outros interessados como a Turquia (fortemente presente no Sudão e em Mogadíscio) e os Emirados Árabes Unidos que ocupam múltiplas posições na região. Bab-el-Mandeb tem apenas 32 km de largura e é a rota mais curta entre o Oceano Índico e o Mediterrâneo, mas para evitá-lo os barcos teriam de fazer a volta pelo Cabo da Boa Esperança. Para uma visão mais ampla leia o texto “Entre a cooperação e a rivalidade intercontinental” de Nádya Silveira (https://pucminasconjuntura.wordpress.com/2018/11/07/entre-a-cooperacao-e-a-rivalidade-intercontinental-a-travessia-do-mar-vermelho-pela-militarizacao/).

Cargas bilionárias e desprotegidas chamaram a atenção de piratas que em pequenas e ágeis embarcações motorizadas (depois, com a profissionalização dos saques, já com apoio de grandes navios) expandiram-se entre 2008 e 2012 quase inviabilizando a travessia do Índico em frente à Somália. No seu auge, em 2011 houve 237 ataques a navios pela pirataria somali, que só cedeu diante da Task Force 151 constituída por uma parceria de 33 nações incluindo os EUA e da Operação Atalanta da União Europeia com base na Resolução 1816 da ONU permitindo ações internacionais em águas territoriais somalis. Além das cargas, os piratas especializaram-se na obtenção de resgate pelos reféns que passavam longos períodos detidos principalmente em Puntland, um estado semiautônomo no norte do país, na prática imune ao controle federal.

Terra do caos

A República da Somália foi criada em 1960 pela junção da Somalilândia Britânica ao norte com o então protetorado administrado pela Itália no sul e durou até 1969 quando o 2º Presidente, Omar Ali Sharmarke, eleito democraticamente, foi assassinado a tiros por um guarda-costas viabilizando o golpe de Estado comandado pelo general Mohamed Siad Barre que implantou um regime marxista de partido único apoiado pela União Soviética, por sua vez derrubado por uma revolta de líderes tribais em janeiro de 1991. Desde então e até muito recentemente o país ficou à deriva, sem um governo central, à mercê do fluido poder dos clãs, de milicias islamitas e de quadrilhas de malfeitores. De imediato, a Somalilândia autodeclarou sua independência que, embora nunca reconhecida internacionalmente, garantiu-lhe a administração de um território de 284,9 mil km2 que corresponde a 45% da área total da Somália, possuindo moeda e forças armadas próprias. Em 1998 o estado de Portland (ao lado da Somalilândia) também realizou suas próprias eleições e decidiu tornar-se autônomo, mas permanecendo como parte da Somália. Curiosamente, ambos são politicamente bem mais estáveis que a pátria-mãe, embora da mesma forma assolados por altíssimos níveis de pobreza. As grandes potências e os vizinhos não lhes dão reconhecimento por temor de que isso estimule iniciativas similares.    

Instabilidade permanente, resquícios de pirataria e a presença violenta da Al-Shabbab (ligada à Al Qaeda) que ainda controla vastas áreas no centro e nas zonas rurais e quer implantar um estado islâmico wahabi (ultraconservador) além de ameaçar com o fechamento do estreito de Bab-al-Mandel, tem provocado um vai e vem de tropas norte americanas e da ONU, ambas exaustas por lidar com uma realidade sem presente nem futuro.


 Numa das muitas tentativas de normalizar pelo menos em parte a situação geral, foi aprovada uma Constituição provisória dividindo o país em 18 administrações regionais com Parlamento composto por 245 membros (??): 44 para cada “classe” (ou etnia) principal, os Dir, Hawiye, Darod, Oigil – 24 para as “classes” menores – 20 para somalis de grande influência e 25 para mulheres, num arranjo que evidentemente não tinha como funcionar, mesmo porque chefes tribais que haviam tomado a capital da Somália não o reconheceram e a escolha de um Presidente teve que ser feita em Nairobi, no Quênia.

Fruto do caos geral, em 2006 explodiu a Batalha de Mogadiscio, com a Aliança para a Reestruturação da Paz apoiada pela Etiópia de um lado e a União das Cortes Islâmicas – UCS – com armas fornecidas pela Eritréia, de outro, resultando em 350 mortes no fogo cruzado. Três anos depois e já com apoio dos EUA tropas etíopes conseguiram rechaçar a UCS que, então, dividiu-se em diversas facções. A mais forte delas, Al Shabaab, por fim expulsou os etíopes.

Um novo governo afinal acaba de ser eleito pelo Parlamento e Hassan Sheikh Mohamud tomou posse na presidência em 23 de junho deste 2022 (já exerceu o cargo entre 2012 e 2017) para um mandato de 4 anos, numa cerimônia que significativamente contou com a presença dos 1os. Ministros egípcio e etíope, além dos presidentes queniano e do Djibouti, mais o primeiro escalão da União Africana. Tendo a missão extremamente difícil de enfrentar a seca e a fome que afetam seu povo e administrar um país do qual só comanda uma pequena parte, Mohamud nomeou seu melhor amigo, Hamza Abdi Barre, formado em administração pela Universidade Islâmica da Malásia, como 1º Ministro. Barre, embora tenha só 48 anos, já tem 8 filhos (não se sabe de quantas esposas, pois a poligamia para os homens é permitida), acima até mesmo da altíssima taxa de fecundidade nacional que recém diminuiu para 5,9 filhos por mulher.

Na Somália, a prática da mutilação genital feminina (MGF) é praticamente universal, atingindo a 98% das meninas e das mulheres, mesmo sendo proibida pela Constituição. As famílias costumam comemorar, considerando que a prática – feita a partir dos 5 anos de idade – destina-se a manter a pureza da filha e prepará-la para o casamento, que em geral se dá ainda na infância. A Unicef, em seu documento Erradicação da Mutilação Genital Feminina na Somália, diz que “a MGF pode deixar graves sequelas no bem-estar físico, mental e psicossocial em quem a sofre, tendo consequências para a saúde imediatas e de longo prazo”. As complicações podem provocar perda de libido e infecções urinárias, entre diversos outros males, mas a erradicação é dificultada pela sua não condenação pelo Islã, além de enfrentar uma realidade em que as mulheres ocupam uma posição de radical inferioridade em relação aos homens.

Missões da ONU e da União Africana para a Somália não são capazes de sequer atenuar o mar de problemas vividos pelos somalis. Os Estados Unidos, muito mais preocupados com o mercado petrolífero do que com a sobrevivência da população, após retirar seus marines durante o governo Trump, agora enviaram alguns deles de volta com o objetivo expresso de combater os jihadistas do al Shabaab, mesmo reconhecendo a inutilidade prática momentânea da iniciativa de Jo Biden.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Eleições 2014 até na Bolívia

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·         Mundo
·         Vitor Gomes Pinto
Eleições 2014 até na Bolívia
26/01/14 às 22:27 (publicado no Bem Paraná - Curitiba)

A temporada de caça a eleitores já começou para os políticos latino-americanos. Não importa se com cartas marcadas ou não, o fato é que a realização de pleitos ditos universais (ou limitados a votantes do partido no poder como na Ilha) para o Executivo e o Legislativo passaram a se constituir na face aparente dos regimes mais ou menos democráticos no continente. Além do início das administrações de Peña Nieto que no México traz de volta o PRI e da socialista Michelle Bachelet no Chile, a presidência mudará de mãos em sete países, começando em 2 de fevereiro por El Salvador e Costa Rica, os dois com forte perspectiva de um 2º turno em seguida.
A Frente Farabundo Marti para la Liberación Nacional – FMLN, partido originário da guerra salvadorenha dos anos oitenta, está no governo com Mauricio Funes (sua esposa é a brasileira Vanda Pignato, representante do PT na região) que fez uma administração aberta e é o mais popular dos governantes centro-americanos. Recusou-se a entrar para o bloco bolivariano da ALBA e procurou aproximar-se da Aliança para o Pacífico onde estão Chile, Colômbia, México e Peru. A esquerda mais ideológica não gostou e agora apresenta como candidato o atual vice, Salvador Sánchez Cerén que não deslancha. Tem 35% da preferência eleitoral, contra 32% do dentista e ex-prefeito de San José Norman Quijano da Arena, que conseguiu unir toda a direita tradicional em torno do seu nome. O grande problema é o tráfico de drogas. Funes negociou desde 2012 uma trégua com os líderes das duas maiores quadrilhas do país – Mara Salvatrucha e Calle 18 (M13 e M18) -, presos na prisão de segurança máxima Zacatecoluca, mas neste começo de ano elas voltaram a atacar policiais e soldados. Em 14 de abril último El Salvador comemorou o 1º dia sem homicídios num período de três anos.
Após duas administrações social-democratas Costa Rica tem três concorrentes em virtual empate técnico: Johnny Araya do situacionista Partido de Liberação Nacional (PLN) com 22,2% das intenções de voto; José Maria Villalta da Frente Ampla de esquerda com 20,3% e Otto Guevara do Movimento Libertário de direita com 20,2%. Caso ninguém obtenha 40% dos votos válidos, haverá 2º turno. Tentando evitar um terceiro mandato do PLN, a esquerda, que tem penetração na juventude (1/3 do eleitorado), propõe revitalizar o papel do setor público e ampliar direitos de gays, lésbicas e transexuais, enquanto Guevara quer um Estado mais eficiente e competitivo. O país mantém a tradição de neutralidade desde que aboliu o Exército em 1948, mas a proximidade com Cuba e Estados Unidos, assim como a pressão dos venezuelanos tem presença ativa nos debates pré-eleitorais.
Na Colômbia, onde o pleito legislativo é em março e o presidencial em 25 de abril, não devem ocorrer mudanças de rumo. O favoritismo é do neoliberal Juan Manuel Santos que deseja a reeleição. Tem mais de 20 pontos percentuais de vantagem frente ao uribista Óscar Zuluaga e a Clara López do esquerdista moderado Pólo Democrático. A proposta de realizar um referendo de aprovação (ou não) dos termos do Acordo de Paz com as Farc, em discussão em Havana, não tem chance pelo curto prazo disponível. O prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, destituído pelo Procurador Geral da Nação, resiste no posto e se aproxima do Partido dos Indignados ou Partido do Tomate, formado por jovens que num movimento similar às marchas de junho no Brasil, ganharam fama jogando os frutos contra símbolos dos poderes constituídos e colhem assinaturas populares para concorrer, o que também parece inviável.
Em maio (dia 4) chega a vez do Panamá escolher o novo ocupante do Palácio das Garças, provavelmente José Domingo Arias do governante Cambio Democrático que nas pesquisas tem 39% de apoio. No fundo, nada deve mudar, mas se à última hora as oposições se unirem podem vencer ou com Juan Carlos Navarro do PRD, social-democrata ou com Juan Carlos Varela, liberal de direita do Partido Panamenhista. Há, ainda, a hipótese mais remota de o atual presidente Ricardo Martinelli, cuja gestão tem índices elevados de apoio, virar a mesa e aprovar no Congresso a reeleição, hoje vetada.
O Brasil, transformado, segundo Miguel Bastenier do El País, num feudo do Partido dos Trabalhadores e sem oposição visível, deve reeleger Dilma Rousseff sem maiores problemas em outubro. Nem mesmo as condenações de parte da alta cúpula do partido no processo do Mensalão ou a rejeição popular expressa nas marchas de rua de junho de 2013 foram suficientes para ameaçar o quarto mandato consecutivo do grupo comandado por Lula da Silva.
O Uruguai (1º turno em 26/10 e 2º em 30/11) apenas aguarda o retorno de Tabaré Vasquez à presidência, substituindo a José Mujica, ambos da Frente Ampla. Com chances mínimas estão os candidatos dos tradicionais Partidos Nacional e Colorado (governou mais de cem anos até desabar com mínima votação em 2004) ou dos Independentes. Por lei haverá um pleito interno de cada Partido em 1º de junho para escolher oficialmente o respectivo candidato.

Por fim as eleições bolivianas previstas para dezembro foram antecipadas para 5 de outubro, mal dando tempo às oposições para improvisar o governador de Santa Cruz, Rubens Costas, como uma alternativa a Evo Morales que concorre pela terceira vez. A Constituição do país proíbe uma segunda reeleição, mas Evo renunciou quase ao final do primeiro mandato com o que, segundo ele, o calendário eleitoral recomeçou do zero. O mandato é de 5 anos e, depois, o Movimento ao Socialismo – MAS tentará de novo aprovar a reeleição ad eternum do seu chefe.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Muitos pacientes e poucos médicos... nos EUA

Um dos efeitos colaterais do novo modelo de saúde democrata agora implementado nos Estados Unidos - conhecido como Obamacare - é o aumento da quantidade de pacientes à procura de atenção médica, potencializando um fenômeno que tem se agravado nos últimos anos: a gradativa redução do número de profissionais em atividade. Isso se deve ao envelhecimento dos médicos e ao maior interesse por outras profissões, o que ocasiona uma diminuição no acesso à carreira. Isso ocorre também com os dentistas, justificando a destinação de recursos significativos, pelo Obamacare, para custear projetos acadêmicos destinados a experimentar novos tipos de profissionais, quem sabe rompendo, no futuro, a reserva de mercado que as atuais profissões da área da saúde usufruem.
Não é, evidentemente, a mesma situação vivida no Brasil, onde o que hoje se observa - crescente pressão da população por atenção médica - tem causas e efeitos bem distintas. Aqui, por um lado, tem havido expansão constante do número de faculdades e de médicos e, por outro lado, o aumento da procura se deve a que os Planos de Saúde - o chamado subsistema suplementar - cada vez ocupam mais espaço na preferência dos consumidores.
A escassez de oferta de médicos e de outros profissionais em lugares distantes e economicamente deprimidos não é uma especificidade do Brasil ou da América Latina. Como se vê no excelente texto de Danielle Ofri - Lots os new patients, too few doctors - publicado pelo New York Times de 16/01/2014, é cada vez mais igualmente uma realidade para os norte-americanos.   Leia Mais.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Armas químicas podem ser destruídas na Síria?

Armas químicas podem ser destruídas na Síria?
Este texto foi escrito em setembro de 2013. Em seguida a proposta feita por Vladimir Putin levou a Síria a aderir ao Tratado de proibição de armas nucleares e ao início da desativação do arsenal sírio de armas químicas sob supervisão da ONU com o compromisso dos Estados Unidos de não mais atacar o país. No entanto, a guerra civil prosseguiu.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Guerra civil no Sudão do Sul

A mais nova nação do mundo, o Sudão do Sul, não sabe o que fazer com a independência a duras penas conquistada quando, em 9 de julho de 2011, separou-se do Sudão sob os aplausos da comunidades internacional. O cordão umbilical, contudo, nunca foi rompido, pois o contencioso representado pelas ricas áreas limítrofes de Abyei, Unity e Alto Nilo permaneceu sempre em aberto (as reservas já comprovadas farão do Sudão do Sul o terceiro maior produtor do sub-sahara africano, após Nigéria e Angola). Difícil, também, tem sido perdoar ou esquecer a história recente. Darfur, a província sudanesa mais a oeste, na divisa com Chade, Líbia e República Centro Africana, foi o palco do genocídio que fez o Tribunal Penal Internacional condenar por crimes contra a humanidade o presidente Omar al-Bashir, que por sinal continua governando, embora não possa sair do país para não ser preso pela Interpol.  


A ONU acaba de aumentar seu contingente na região para 12.500 homens, mas tem fracassado de maneira sistemática nas tentativas de colocar lado a lado as distintas etnias e tribos que secularmente alternam guerra e convivência no território sudanês. De acordo com o manual, inimigos tradicionais devem sentar em volta da mesma mesa, firmar um acordo de paz e, então, passar a dividir o poder como se irmãos fossem. Em julho de 2005 a aplicação dessa teoria transformou o líder rebelde sulista John Garang em vice-presidente do Sudão, mas um mês depois ele morreu num acidente aéreo, o que provocou confrontos entre sulistas e árabes nortistas com centenas de mortos nas ruas de Kartum. Seu substituto, Salva Kiir Mayardiit, bafejado por melhor sorte, não só sobreviveu como selou o acordo de autonomia com al-Bashir e é hoje o presidente do Sudão do Sul.  

Sempre em obediência às diretivas internacionais (a força de paz UNMISS, Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul, com uma maioria de capacetes azuis indianos, dá sustentação ao governo), Kiir, que é da etnia Dinka, dividiu a administração do novo país em dois, entregando a vice-presidência para Riek Mashar, líder dos Nuer, minoritários, mas dominantes nas províncias petrolíferas.
Autoritário, em meio a denúncias de um milionário escândalo financeiro, no último dia 15 Kiir demitiu não só o seu vice como todo o gabinete. Imediatamente Mashar articulou, sem sucesso, um golpe de estado e assumiu o comando de um exército rebelde. A resposta foi a dissolução da Guarda Presidencial até então composta por agentes das duas etnias e o massacre dos Nuer. 

Não há como confundir os integrantes das tribos em luta. Embora sejam todos negros e secularmente dedicados ao pastoreio, os dinkas, famosos por seu porte atlético e beleza física, são gigantes (o povo mais alto da terra) que facilmente alcançam os 2 metros de altura.  Já os homens nuer são identificados pela marca facial - seis linhas paralelas feitas à navalha do alto da testa até o nariz, conhecida como Gaar - que recebem ao chegar à puberdade. O relato de Simon K ao jornal The Guardian reflete bem o padrão das guerras de extermínio racial na África. Capturado ele não conseguiu responder a uma pergunta crucial, feita no idioma dinka: “qual é o seu nome?”. Na cela do posto policial quase no centro de Juba, a capital sul-sudanesa, ele contou 252 nuers e viu os canos das armas que entre as barras das grades nas janelas atiravam, suspendiam a fuzilaria para ver se alguém ainda se mexia e atiravam de novo. Dois dias depois, com a chegada de socorro, Simon K e outros onze tinham sobrevivido imóveis sob os corpos que, deteriorando-se, cada vez mais os sufocavam.
   
A base das Nações Unidas está à beira do colapso, invadida por 20 mil fugitivos do conflito em busca de alimentos, água potável e proteção contra o calor intenso do dia e o frio cortante da noite. Não existem soluções fáceis à vista. Uma intervenção do Conselho de Segurança da ONU não tem viabilidade devido ao bloqueio de China e Rússia, fortes aliados de al-Bashar, e o regime de Kartum pode aproveitar-se do caos e intervir, aliando-se aos nuer de Mashar, para retomar os poços de petróleo que considera serem seus. Por fim, a internacionalização do conflito é eminente. Tropas de Uganda já estão no Sudão do Sul e é cada vez mais instável o quadro político nas vizinhas República Centro Africana e República Democrática do Congo. O governo de Salva Kiir parece afundar depois de receber e desperdiçar bilhões de dólares em ajuda internacional. A delegação africana de alto nível, incluindo o presidente do Quênia e o 1º Ministro da Etiópia, visitou Juba e propôs a cessação das hostilidades e início imediato de diálogos, tentando aliviar a crescente crise humanitária. Resta agora impedir as vinganças e tornar a convivência novamente possível.   

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Vinhos ontem e hoje

Tragédia maranhense

Texto de Frei Betto, publicado na página de Opinião do Estado de Minas, analisa o problema dos presídios brasileiros. Leia Mais

Vinhos com ou sem dor de cabeça

Não se trata, aqui, de falar em ressaca. Afinal, você deve respeitar os limites de seu organismo e, por mais que goste de vinho ou de qualquer outra bebida, ingerir apenas a quantidade que seu organismo aceitar sem ultrapassar a barreira da normalidade. Para algumas pessoas, no entanto, até mesmo uma só taça de vinho tinto tem o poder de desencadear, em minutos ou em poucas horas, uma forte dor de cabeça que pode (mas em geral não o faz) provocar náuseas. O fenômeno é tão freqüente que ganhou até nome na literatura médica: é a Síndrome da Dor de Cabeça pelo Vinho Tinto, RWH na sigla em inglês (Read Wine Headache syndrome). A discussão sobre suas causas e significados ganhou ênfase doze anos atrás quando o New York Times repercutiu, quase sem tirar nem por, uma análise publicada na revista Harvard Health Letter. Desde então médicos, químicos, consumidores, enólogos e vinicultores procuram compreender o fenômeno. Em princípio, à exceção dos que sofrem de asma, urticária ou são alérgicas a componentes do vinho respondendo à sua ingestão com sintomas de enxaqueca, não há uma razão clara para a manifestação da RWH que, não obstante, resiste aqui e alhures.

Uma importante corrente de estudiosos afirma que a culpa é do SO2 que atende por vários nomes: anidrido sulfuroso, dióxido de enxofre, sulfito, INS 220 (classificação pelo International Numbering System). É o conservante que permite maior longevidade aos alimentos atuando como antisséptico, antibacteriano e agente clareador relevante inclusive no caso de frutas de balcão e de vinhos brancos que de outra maneira ficariam marrons. Evita a formação de ácido acético que tornaria o vinho avinagrado, mas em doses exageradas pode acidificar o solo e depois, no produto final, gerar um característico cheiro de ovo podre. É conhecida a história de um degustador sueco que provou vários vinhos com odor a fósforo e questionou se a vinícola tinha problemas higiênicos para adicionar tantos sulfitos. Uma vez que o SO2 está presente na casca das uvas, é impossível produzir vinhos absolutamente sem contê-los. Aliado da videira, o enxofre se opõe a parasitos muito vorazes como os fungos míldio e oídio. No processo de vinificação é adicionado ao mosto logo depois do esmagamento das uvas para combater bactérias e leveduras indesejáveis. O vinho normalmente é um meio ácido. Um baixo pH, por volta de 3 (um meio neutro tem pH igual a 7), está associado a uma vida mais longa do vinho e quanto menor o pH menos SO2 lhe será necessário. 

Os efeitos potencialmente prejudiciais à saúde dos sulfitos fizeram com que a FDA (Food and Drug Administration) dos Estados Unidos impusesse a exigência de que os produtos contendo 10 mg ou mais de SO2 (dez partes por milhão) devem obrigatoriamente fazer constar no rótulo: “contém sulfito” (ou SO2, ou INS 220). Contudo, não há qualquer obrigatoriedade de revelar qual o teor real em cada produto. No Brasil, que segue o padrão americano, a Anvisa aceita que o vinho possa conter até 350mg. Na União Européia o limite máximo é de 160 mg/litro e na Austrália (para vinhos tintos secos) de 250 mg/l. Quanto mais alta a dosagem de SO2 maiores são as chances de que a dor de cabeça se manifeste (assim como em vinhos baratos que costumam adicionar mais açúcar para elevar o teor de álcool que então se torna mais impuro e mais danoso). Algumas aferições de laboratório feitas em estudos brasileiros têm indicado que o teor de SO2 em vinhos tintos nacionais situa-se num patamar de até 200 mg/l, mas isto depende da acidez do líquido e, em última análise, da consciência do produtor. 

A Ingestão Máxima Aceitável (IDA) de sulfitos, segundo a FAO e a OMS, é de 0,7 mg por kg de peso, ou seja, 49 mg para uma pessoa que pese 70 kg. Uma meia garrafa de tinto que contenha apenas 15 mg por litro (15 partes por milhão), por si só proporciona 56 mg de SO2. É importante, ainda, considerar outras fontes de ingestão diária, pois os sulfitos estão em proporções por vezes mais altas, p.ex. em frutas cristalizadas, sucos industrializados, geléias, mostarda, biscoitos, licores, salsichas.

Cada vez mais surgem vinhos naturais (sem sulfitos) e os que, respeitando a natureza como os ditos biológicos, orgânicos ou biodinâmicos, por vezes adicionam quantidades mais baixas do dióxido de enxofre. O Instituto Francês do Vinho (IFV) permite a presença de anidrido sulfuroso até mesmo nos naturais. A ausência de SO2 torna o vinho instável provocando perdas de até 50% da produção, de onde resultam preços finais elevados e de reduzida competitividade no mercado. Juan Carrau, que ainda produz entre outros o Velho do Museu, um ícone brasileiro, quase na divisa com o Uruguai, diz que a condução dos vinhedos orgânicos (e biodinâmicos) é um caminho para atingir vinhos de melhor qualidade em equilíbrio com o meio ambiente e não necessariamente para reduzir o teor de SO2. Ainda assim, felizmente é crescente a oferta de vinhos com pouco ou sem sulfitos no mercado e, uma vez que o ar é o principal fator para abreviar a sua longevidade, surgiram melhores lacres, ceras colocadas acima da rolha e tampas (screw caps) que proporcionam uma mais perfeita vedação. Produtores europeus e norte-americanos têm ofertado vinhos com zero ou baixos teores de sulfitos, como a Frey Vineyards no norte da Califórnia (em Redwood Valley), Roboredo Madeira no Douro com o Carm que tem “SO2 free” no rótulo (importado pela World Wine), ou o Côtes du Rhone Belleruche do mestre das práticas biodinâmicas Michel Chapoutier. E, no Chile, vale lembrar as criações da Nativa Viñedos Orgánicos (estes dois últimos na Mistral).  
                
Um dos mistérios nesta equação é que os brancos, nas mesmas condições (de ingestão moderada), não causam dor de cabeça embora, devido à sua menor resistência à oxidação, requeiram maiores dosagens de SO2. Tal fato tem levado os pesquisadores a apontar outros possíveis culpados para a RWH, como as histaminas, a tiramina e os taninos. Vinhos tintos contém de 20% a 2
00% mais histamina (é produzida pelo organismo e ingerida por meio dos alimentos) do que os brancos e pessoas alérgicas podem ser afetadas pela dilatação e contração dos vasos sanguíneos de onde resulta a dor de cabeça. Já a tiramina, outra amina, que tem sido associada à ocorrência de enxaquecas, parece mais prejudicial em vinhos muito jovens ou naqueles não adequadamente filtrados ou mal estocados. Os taninos, próprios dos tintos, atuam como potentes antioxidantes e servem para conservar, dar cor, substância e aromas ao vinho, mas são liberadores de serotonina, um neurotransmissor (conduz impulsos nervosos e atua no controle da ansiedade, medo, depressão, sono, percepção à dor) que em altos níveis pode provocar dores de cabeça em pessoas sensíveis. É preciso lembrar, ainda, que o álcool ─ com teores que vão desde 7% em um riesling do Mosel ou num vinho verde até 16% em certos gewurztraminer da Alsácia ou zinfandels ─ costuma ser responsável por desidratação e pelas cefaléias que ocorrem logo após a sua ingestão.


É provável que as dores de cabeça sejam, para quem delas sofre com alguma freqüência, o resultado do somatório de vários fatores, cabendo a cada um esforçar-se para identificar o que mais o afeta. Algumas possíveis soluções para casos reais de RWH: a) prefira vinhos brancos; b) prefira vinhos com teor mais baixo de álcool; c) opte por varietais das uvas gamay e pinot noir que são menos tânicas, mas observe se o consumo de chocolates e chá ou outros alimentos que também contém taninos lhe causam os mesmos efeitos; d) experimente tomar, antes do vinho, um comprimido de aspirina ou, se não tiver problemas de pressão alta nem for idoso, uma cápsula de ibuprofen (Advil), consultando seu médico se tiver dúvidas sobre a medicação; e) procure ter acesso a vinhos sem SO2 ou orgânicos/biodinâmicos/biológicos que informem adicioná-lo em baixas quantidades; f) lembre-se de ingerir água entre uma taça e outra, mantendo-se hidratado; g) adapte-se, mas não deixe de usufruir tudo o que um bom vinho pode fazer pela sua saúde e pela sua vida.